Para boa parte dos brasileiros, ter um imóvel é o primeiro item na lista de sonhos a realizar. Enquanto uns economizam pensando na casa própria, outros encaram a compra como investimento, uma forma de gerar renda extra.
Sarah Eugênia de Souto e seu então marido optaram por investir em imóvel para obter renda com o aluguel. Esperavam que o dinheiro extra fosse suficiente para cobrir as despesas fixas que ele tinha com sua empresa.
A casa em que moravam era quitada, e eles possuíam reserva financeira suficiente para dar entrada em um segundo imóvel.
“Assumindo esse compromisso, seríamos obrigados a fazer uma poupança forçada, já que teríamos a prestação mensal a pagar”,
explica Sarah.
Antes de comprar o apartamento, avaliaram variáveis como localização, acabamento, relação custo/benefício, e perceberam que as prestações não comprometeriam o orçamento familiar. Analisaram ainda alguns empreendimentos construídos anteriormente pela mesma construtora, a Direcional.
Optaram então por um imóvel próximo a uma estação de metrô em Águas Claras, região administrativa do Distrito Federal.
“Como a nossa pretensão era alugar o imóvel, esse empreendimento se enquadrava exatamente no que procurávamos: aluguel rápido e rentável”,
diz ela.
Entretanto, Sarah e o marido não contavam com o atraso de mais de um ano na entrega do prédio. O contrato previa que em junho de 2016 a obra estaria concluída, admitindo-se uma tolerância de 180 dias. Porém, em agosto de 2017, ainda não tinha sido entregue.
A intenção do casal era alugar imediatamente o imóvel após a entrega, para bancar as despesas fixas da empresa: aluguel, condomínio, internet etc.
“Com o atraso na entrega, a única opção que tivemos foi transferir o escritório da empresa dele para dentro da nossa casa, já que assim ele não teria mais de arcar com esses custos fixos”,
lembra.
Desgaste afetivo
Os danos em razão do atraso não se limitaram à esfera financeira. Atingiram também a vida íntima do casal. “O trabalho em regime de home office gerou prejuízo financeiro para a empresa, visto que a produtividade diminuiu e meu ex-esposo deixou de receber clientes em seu escritório. Além disso, esse transtorno desgastou não só o aspecto profissional, mas também o psicológico e afetivo. Nós nos divorciamos em 2018.”
Após várias tentativas de acordo extrajudicial com a construtora, eles entraram com uma ação em 2017. “Ganhamos a ação em primeira instância e já houve julgamento em segunda instância. O acórdão confirmou a sentença. A empresa entrou com embargos de declaração e atualmente o processo se encontra concluso para decisão sobre os embargos.”
Na apelação dirigida ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), a construtora argumentou que os compradores pleitearam a rescisão de forma unilateral, por não ter mais interesse na aquisição do imóvel. Por isso, segundo a empresa, seria incabível a devolução integral dos valores pagos.
Todavia, ao manter a sentença, o TJDF aplicou a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Editada em 2015, a súmula prevê que, na hipótese de resolução de contrato de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador. A devolução deve ser parcial, caso o comprador tenha sido o responsável pelo desfazimento do contrato, ou integral, se ocorrer, como no caso de Sarah, culpa exclusiva do vendedor.
Jurisprudência a favor
A exemplo da ação movida por Sarah e seu ex-marido, acumulam-se no Judiciário os processos de consumidores que, amparados pela jurisprudência do STJ, buscam a resolução do contrato, o pagamento de lucros cessantes ou a indenização por danos morais em razão de atraso excessivo e injustificável na entrega de imóveis comprados na planta. As justificativas das construtoras para o atraso são muitas: aquecimento do mercado, greve, falta de material de construção e de mão de obra qualificada, grande volume de chuvas etc.
Um caso parecido com o vivido por Sarah, envolvendo atraso do imóvel e reivindicação judicial de lucros cessantes, foi julgado em maio de 2018 pela Segunda Seção do STJ. Ao analisar o EREsp 1.341.138, a ministra Isabel Gallotti, relatora, deixou claro que
“o atraso na entrega do imóvel enseja pagamento de indenização por lucros cessantes durante o período de mora do promitente vendedor”.
Mais ainda: segundo ela, nos termos da jurisprudência consolidada do tribunal, o prejuízo do comprador com esse atraso é presumido, ou seja, não precisa ser provado no processo.
Danos morais
Em setembro de 2017, ao julgar o AREsp 1.049.708, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, a Quarta Turma do STJ confirmou decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que entendeu que o atraso na entrega de imóvel destinado a moradia, “após 12 meses da data prevista, acarretou dano moral”.
Segundo Salomão, a jurisprudência firmada no STJ entende que “a inexecução do contrato de compra e venda, consubstanciada na ausência de entrega do imóvel na data acordada, acarreta, além da indenização correspondente à cláusula penal moratória, o pagamento de indenização por lucros cessantes”.
Além do aborrecimento
Importante decisão do STJ foi proferida no REsp 1.679.556, sob a relatoria também da ministra Isabel Gallotti. Nesse caso, a ministra afirmou que a jurisprudência pacífica do tribunal considera que “o atraso expressivo na entrega de empreendimento imobiliário pode configurar dano ao patrimônio moral do contratante, circunstância que enseja a reparação”.
O atraso foi de mais de três anos da data prevista.
“Nesse contexto, a extrapolação exacerbada do prazo de entrega previsto contratualmente suplanta o mero aborrecimento”,
declarou a relatora.
“A demora acarretou ao promitente comprador desmedidas aflições e angústias, a frustrar todas as suas expectativas depositadas quando da aquisição do bem, configurando a ocorrência de dano moral”, registrou no acórdão o Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE), posição que foi confirmada pelo STJ.
O entendimento é compartilhado pela Terceira Turma. No REsp 1.662.322, a relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que, embora o simples descumprimento contratual não seja capaz de provocar danos morais indenizáveis, na hipótese de atraso excessivo na entrega de unidade imobiliária, “o STJ tem entendido que as circunstâncias do caso concreto podem configurar lesão extrapatrimonial”.
Casamento adiado
No caso analisado pela ministra Nancy Andrighi, os noivos procuravam por um apartamento cuja obra estivesse em fase adiantada, para receber o imóvel com tempo de fazer uma reforma e poder mudar-se com tranquilidade logo após o casamento. O prazo previsto contratualmente para a entrega era maio de 2009, com tolerância de 180 dias. Eles marcaram o casamento para junho de 2010. Entretanto, diante do atraso da construtora, tiveram de adiar o casamento para outubro de 2010, mesmo com os convites já distribuídos.
Para Nancy Andrighi, “o fato de os recorridos terem adiado o casamento – com data já marcada, e não apenas idealizada –, o que redundou na necessidade de impressão de novos convites, de escolha de novo local para a cerimônia, bem como de alteração de diversos contratos de prestação de serviços inerentes à cerimônia e à celebração, ultrapassa o simples descumprimento contratual, demonstrando fato que vai além do mero dissabor dos compradores, já que faz prevalecer os sentimentos de injustiça e de impotência diante da situação, assim como os de angústia e sofrimento”.
Segundo ela,
“a frustação com a empreitada mostra-se inegável, de modo que o evento não pode ser caracterizado como mero aborrecimento, evidenciando, de forma inegável, prejuízo de ordem moral aos recorridos”.