Posso dar umas palmadas no meu filho? A polêmica envolvendo a Lei Menino Bernardo

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Muitos já ouviram falar da “lei da palmada”. Mas tal expressão não faz jus ao conteúdo da lei, pois gera a ideia de que o que ela fez foi proibir a aplicação do castigo físico ao menor de idade, quando, na verdade, seu conteúdo é bem mais abrangente.

A lei também proíbe o uso de tratamento cruel e degradante, e define o que seja isso: é considerado cruel ou degradante a conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize o menor! E atenção: mesmo que a intenção do autor da conduta seja a de corrigir, disciplinar ou educar! A lei proíbe o uso de violência como ferramenta pedagógica, qualquer que seja o pretexto.

É humilhante e ridiculariza o menor, por exemplo, o uso de apelidos que destaquem alguma dificuldade que ele venha a ter. Para a lei, isso tem o mesmo efeito de uma “palmada”.

A “lei da palmada” é resultado de um projeto que já vinha tramitando há anos no Congresso Nacional, e foi aprovado em junho de 2014. Isso se deu sob a comoção gerada pela morte do menino Bernardo Boldrini, aos onze anos de idade, motivo pelo qual também é conhecida pelo nome Lei Menino Bernardo. Com ela, o Brasil se coloca ao lado de outros 62 países que proíbem punição física a crianças em qualquer ambiente (doméstico, escolar, etc.).

Vale destacar que a lei não se aplica apenas a crianças. Ela também protege adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define como criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, sendo adolescente aquele que tiver entre 12 e 18 anos. Logo, podemos usar o conceito de “menor de idade” para abranger as duas categorias. Aos 18 anos completos, atinge-se a maioridade.

MUDANÇAS NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

A Lei Menino Bernardo agregou novas regras ao ECA, e é daquelas iniciativas legislativas que trazem em seu cerne um conteúdo que está além de nosso tempo presente em termos de “cultura média”.

Assim como é comum dizermos que algumas pessoas, por sua maneira de pensar e agir, “estavam além de seu tempo”, isso também pode acontecer com algumas leis.

Com base nisso, o que devemos concluir? Que elas não deveriam ter sido produzidas, pois tendem a “não pegar”?… Pelo contrário! Leis como a que proíbem o uso de violência sobre menores podem servir para nortear os rumos de certas práticas sociais. No momento em que editadas, é até razoável que causem enorme polêmica, na medida em que inseridas num contexto sociocultural que se propõem a alterar.

Com o passar do tempo, as condutas que se procuraram melhorar por meio da lei, quando vistas em perspectiva, é que passam a causar espanto.

Exemplo disso é o hábito de fumar em ambientes fechados. Sou da época em que, mesmo no interior de aeronaves, era permitido fumar na metade dianteira – e proibido na metade traseira –, como se a fumaça deixasse de ocupar todo o espaço do avião! Atualmente, é impensável alguém pretender fumar em espaços fechados! No entanto, há países em que a cultura do tabagismo ainda impera, e onde a pretensão dos não-fumantes é que é vista como importunação ilegítima…

Portanto, vejo a Lei Menino Bernardo como um marco positivo em nosso sistema jurídico, na medida em que veicula princípios fundamentais, a indicar o que deve ser evitado na relação entre os menores e as pessoas responsáveis por seus cuidados e educação.

SER EDUCADO SEM O EMPREGO DE VIOLÊNCIA É UM DIREITO DO MENOR

Outro ponto digno de destaque: ser educado e cuidado sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel e degradante é um direito do menor e, em se tratando de direito, pode ser imposto pelas autoridades a qualquer pessoa que tenha o menor sob sua responsabilidade: pais, parentes, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada dos cuidados.

A violação deste direito pode ser denunciada, por qualquer pessoa, ao Conselho Tutelar, que está autorizado a tomar medidas variadas de proteção ao menor, comunicando ao Ministério Público os fatos mais graves.

A depender da gravidade do caso, a lei autoriza o Conselho Tutelar a encaminhar os responsáveis pela violência a programas oficiais de proteção à família; a tratamento psicológico ou psiquiátrico; a cursos ou programas de orientação, tendo, ainda, a obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado, sem prejuízo de informar os fatos ao Ministério Público, a quem caberá buscar outras medidas.

Acho curioso ouvir de pessoas de minha geração comentários do tipo: “Quando eu era criança, tomava belas palmadas, mas reconheço que merecia, e isso não me fez nenhum mal, pelo contrário!” Será mesmo?… Primeiro, é suspeito a gente se tomar como exemplo de boa educação. Segundo, se você, que tomou palmadas na infância, acha que foi bem-educado, imagine como seria se seus pais estivessem preparados para educá-lo por outros meios?…

Creio que, com esse questionamento, talvez cheguemos ao ponto central da reflexão e do desafio trazido pela Lei Menino Bernardo: na verdade, ela aponta para a capacidade dos adultos de lidarem com as dificuldades de uma boa educação. E, neste sentido, existe a tendência de nos guiarmos por aquilo que conhecemos, de reproduzirmos o método de educação que foi aplicado a nós, sem submetê-lo a um juízo crítico.

Não faltam pesquisas a demonstrar a inadequação do uso da violência na formação do caráter e da saúde mental do futuro adulto. Na verdade, o uso da violência decorre menos de uma decisão, do adulto, de aplicar uma metodologia em que acredite, e mais de sua sujeição a impulsos irracionais, lastreados na raiva, no medo, na frustração diante de circunstâncias dadas em sua relação com o menor.

Ligia Moreiras Sena, autora do livro “Educar sem violência: criando filhos sem palmadas”, bióloga, mestre em Psicobiologia, doutora em Farmacologia e em Saúde Coletiva, destaca que uma palmada ensina, sim, mas não exatamente aquilo que se pretende. “Ensina outra coisa. Ensina apenas que se ela [a criança] fizer aquilo e um adulto souber, apanhará e sentirá dor. Por essa lógica, bastaria, então, fazer aquilo somente quando o adulto não estiver, ou esconder o que foi feito.” E prossegue: “Por esse prisma, palmada ensina mesmo, ensina sim, ensina muitas coisas. Ensina que somos passíveis de violência. Ensina que a violência é justificável quando nós achamos que é. Ensina que amor e violência podem andar juntos. Ensina que, para escapar da violência, basta fazer escondido. Ensina a mentir.”

A rigor, aqueles que precisam recorrer a palmadas ou a formas de violência psicológica para educarem os menores sob sua responsabilidade, na verdade estão confessando a falta de conhecimento sobre as melhores práticas de educação.

Certamente, não faltarão argumentos no sentido de que a proibição do emprego de castigos transformará as crianças em “pequenos tiranos”, com efeitos nefastos em longo prazo. Sem dúvida, para os que veem no castigo uma ferramenta pedagógica, sua proibição os deixará impotentes. É preciso substituir o “chicote” por outra coisa, e essa “outra coisa” precisa ser buscada por quem se dispõe a educar. Quantos estarão dispostos a isso?

Partindo de uma perspectiva mais ampla, dada por doutrinas milenares, focadas no autoconhecimento, é possível afirmar que, quando o homem reage com violência a determinado estímulo, é porque foram ativados aspectos menos desenvolvidos de sua personalidade. Logo, há aí algo a ser aprimorado! Em outras palavras: a violência nunca é a melhor resposta ao que quer que seja.

No ano de edição da lei (2014), a Agência Senado produziu um vídeo bastante interessante, no qual conta a história da “cabeleireira Maria”, que perdeu a guarda de sua filha, de 14 anos de idade, por maus tratos. Além de Maria, a matéria dá voz a outras pessoas, funcionando como um “mosaico” da polêmica gerada. Vale a pena conferir (clique aqui).

Fato é que, ao vedar o uso da violência, longe de trazer uma solução, a Lei Menino Bernardo lança luz sobre o problema: a construção de uma sociedade de paz passa pela necessidade de educar os educadores! Sim, como sociedade, estamos diante da tarefa de educar os pais a educarem os seus filhos. Não sei se serve de consolo: é tarefa que se impõe não só a nós, brasileiros, mas aos educadores em todo o mundo.

A Lei Menino Bernardo, ao punir as práticas pedagógicas consideradas nefastas, institucionalizou o esforço para superação deste desafio.

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Indicações bibliográficas:

Educar sem pirar, de Nanda Perim, Editora Best Seller
Educação não violenta, de Elisama Santos, Editora Paz e Terra
Por que gritamos, de Elisama Santos, Editora Paz e Terra
Nossa infância, nossos filhos, de Thais Basile, Editora Matrescência
Educar sem violência: criando filhos sem palmadas, de Ligia Moreiras Sena, Editora Papirus / 7 Mares

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