Não é raro atendermos pessoas angustiadas com o fato de terem perdido um pai ou mãe altamente endividados, a ponto de surgir a seguinte preocupação: “Dr., e agora?! Meu pai faleceu e só deixou dívidas. Serei obrigado a pagá-las?”
Neste ponto, vale a distinção entre juízos morais e legais. Nem tudo o que é moral encontra respaldo no direito. E me atrevo a dizer que a recíproca é verdadeira.
Assim, do ponto de vista estritamente jurídico, ninguém pode “herdar dívidas”. Isso não significa que as dívidas deixadas pela pessoa falecida não precisem ser pagas. Mas quem responde por elas é o espólio, não os herdeiros.
O que significa “espólio”? Se buscarmos o significado dessa palavra num dicionário comum, encontraremos: “Espólio: conjunto de bens que integra o patrimônio deixado por uma pessoa após sua morte, a ser dividido no inventário pelos herdeiros” (Michaelis).
Um pequeno esclarecimento: quando se lê “conjunto de bens”, deve-se entender a reunião de “ativos” e “passivos”, ou seja, as dívidas também entram. Portanto, o espólio é o nome dado ao patrimônio da pessoa falecida, sem deixar de considerar as obrigações por ela assumidas em vida.
PRIMEIRA HIPÓTESE: O PATRIMÔNIO DO FALECIDO É POSITIVO (OS ATIVOS SUPERAM O PASSIVO)
Tudo ficará mais claro após alguns exemplos. Primeira hipótese: ao falecer, Jota deixou ativos (imóveis, veículos, aplicações financeiras, etc.) no valor de R$ 5 milhões, e dívidas (financiamentos, parcelamentos tributários, etc.) no montante de R$ 500 mil. As dívidas deverão ser pagas? Sim! Quem responde por elas? O próprio espólio. Do patrimônio de R$ 5 milhões, R$ 500 mil devem ser reservados ao pagamento das dívidas.
Quando se diz que os herdeiros não respondem pelas dívidas da pessoa falecida deve-se entender que essas dívidas não podem afetar o patrimônio deles; haverá de afetar, porém, o patrimônio deixado pelo falecido.
Na prática, quem toma a iniciativa de apurar e pagar as dívidas deixadas pelo falecido é o inventariante – pessoa nomeada para representar o espólio. O inventariante pode ser ou não um dos herdeiros.
No exemplo dado, pagas as dívidas, restará um saldo de R$ 4,5 milhões, a ser, então, transmitido aos herdeiros.
SEGUNDA HIPÓTESE: O PATRIMÔNIO DO FALECIDO É NEGATIVO (O PASSIVO SUPERA OS ATIVOS)
Situação diferente é a do falecido que deixa mais dívidas do que bens para arcar com elas. No direito, isso recebe o nome de “insolvência”. O estado de insolvência do espólio deve ser apontado pelo inventariante e reconhecido pelo juiz. Em havendo a declaração judicial de insolvência, reconhece-se, oficialmente, a incapacidade do espólio para quitar integralmente todas as dívidas. E agora? Que dívidas devem ser quitadas? Como não poderia deixar de ser, essa escolha não é feita de forma “livre”, e sim regulada por lei.
Tal como ocorre num processo de “falência”, existe uma classificação legal dos créditos, que passam a ser pagos segundo uma ordem de “preferência”. Isso está regulado no artigo 955 e seguintes do Código Civil. Uma classe mais privilegiada de credores exclui a outra e, dentro da mesma classe, não havendo ativos suficientes para quitar integralmente os débitos, serão eles liquidados por meio de rateio proporcional.
Na prática, diante da existência de patrimônio negativo, a verdade é que os herdeiros sequer se dão ao trabalho de abrir o inventário. Em contrapartida, os ativos deixados pelo falecido acabam não sendo transmitidos. É o caso de alguém que, ao falecer, deixa apenas um automóvel e dívidas de R$ 200 mil. Os herdeiros se limitam a usar o bem, sem tomarem a iniciativa de transmiti-lo de maneira formal…
TERCEIRA HIPÓTESE: AS DÍVIDAS DO ESPÓLIO DEIXAM DE SER PAGAS
Até aqui, tratamos de hipóteses em que, ao fazerem o inventário, os herdeiros declararam a existência de dívidas deixadas pelo falecido.
Mas, e se… essas dívidas existirem e deixarem de ser declaradas? Isso pode ocorrer seja por malícia (embora soubessem – ou pudessem saber delas –, os herdeiros optaram por omiti-las), seja por ignorância (o falecido tomou dinheiro de algum amigo ou parente e não contou a ninguém).
A partir desse cenário, vamos dar mais um passo: seja omitindo, seja ignorando a existência de dívidas, os herdeiros fazem o inventário e recebem o patrimônio deixado pelo falecido. Nessa hipótese, como ficam os credores?
Se, por um lado, a lei protege os herdeiros de responderem por dívidas da pessoa falecida, por outro lado ela prevê que os credores poderão perseguir, no patrimônio dos herdeiros, os valores que lhes tiverem sido transmitidos em desrespeito à obrigação de quitá-las. É o que diz o artigo 1.997 do Código Civil: “A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube.”
Na verdade, não é tão larga a margem de manobra que os herdeiros têm para omitirem a existência de dívidas. É que, dentre os documentos necessários para o processamento do inventário, estão as mais variadas “certidões negativas de débitos”.
Não é possível transmitir um bem imóvel, por exemplo, sem juntar certidão demonstrando a inexistência de pendência de IPTU a ele relacionado…
Portanto, ao inserir algumas exigências no procedimento de inventário, o legislador cuidou dos interesses da Fazenda.
IMPACTO DAS DÍVIDAS SOBRE O ITCMD
A depender dos valores envolvidos, o efeito das dívidas sobre o valor do imposto a ser recolhido (ITCMD – Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação) pode assumir enorme relevância.
Sabemos que a transmissão do patrimônio de pessoa falecida é tributada. No Estado de São Paulo, o imposto é de 4% sobre o valor do patrimônio, mas há Estados em que essa alíquota pode chegar a 8%, como é o caso de Ceará e Rio de Janeiro.
A Fazenda do Estado de São Paulo, por exemplo, não admite que, da base de cálculo do ITCMD, sejam abatidas dívidas porventura existentes. Esse posicionamento simplesmente viola o disposto no artigo 1.847 do Código Civil e pode ser questionado, pelos herdeiros, por meio de ação judicial movida contra a Fazenda.
Aliás, esse não é o único ponto em que, no contexto de um inventário, os interesses da Fazenda acabam “atropelando” a boa técnica jurídica. No Estado de São Paulo, na transmissão de bens imóveis, é bastante conhecida a polêmica envolvendo a cobrança de ITCMD: a Fazenda insiste em lançar na base de cálculo do imposto o chamado “valor venal de referência”, enquanto a lei determina que se considere o valor que serve de base para apuração do IPTU. Isso já foi tema tanto de artigo quanto de vídeo, ambos disponíveis em nossos Canais.
Quando as polêmicas acima apontadas são levadas ao Judiciário, normalmente colhem-se decisões favoráveis ao contribuinte. Mesmo assim, a Fazenda não altera sua forma de proceder, quiçá baseando-se no fato de que são muitos os cidadãos que simplesmente se rendem à cobrança indevida…
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